Paulo de Tarso Galembeck (UEL)
Este texto apresenta os mais recentes avanços da Linguística Textual, a partir do exame das etapas da evolução dos estudos do texto. Para tanto, apresentam-se os três passos da evolução dos estudos do texto (análises transfrásticas, gramáticas textuais, teorias de texto). Na última parte do texto, discute-se a conceituação do texto como processo (e não como produto), e o papel do contexto interacional na depreensão dos sentidos do texto.
O percurso da Linguística Textual
A adoção do texto e do discurso como unidade básica dos estudos linguísticos não foi um processo unitário e uniforme; já que houve várias orientações às quais correspondiam propostas teórico-metodológicas diversas. De forma genérica, essas propostas podem ser agrupadas em duas tendências: a Análise do Discurso de linha francesa e a Lingüística Textual, oriunda, sobretudo dos países germânicos (Alemanha, Países-Baixos) ou do Reino Unido. Na primeira, as preocupações dominantes são o sujeito da enunciação (um ser situado num dado momento histórico), os sentidos que ele produz e a ideologia que subjaz à sua mensagem. A Lingüística Textual tinha por objeto específico os processos de construção textual, por meio dos quais os participantes do ato comunicativo criam sentidos e interagem com outros seres humanos.
Na seqüência do texto, são expostos os três passos principais da evolução da Lingüística Textual: as análises transfrásticas; a Gramática de Texto; a Teórica do Texto.
Análises transfrásticas
As análises transfrásticas ainda não consideram o texto como o objeto de análise, pois o percurso ainda é da frase para o texto. Aliás, as análises transfrásticas surgiram a partir da observação de que certos fenômenos não poderiam ser explicados pelas teorias vigentes na época (estruturalismo e gramática gerativa), por ultrapassarem os limites da frase simples e complexa: a co-referenciação (anáfora); a correlação de tempos verbais (“consecutio temporum”); o uso de conectores interfrasais; o uso de elementos e indefinidos. Veja-se o exemplo a seguir:
(01) “O que os escândalos do governo Lula mostram é um antídoto à desculpa tipicamente nacional de que corrupção existe em todo lugar. Afinal revelam um padrão que, como gosta de dizer o presidente, “nunca, em 500 anos de história”, foi muito diferente do que é agora. Portanto, tem uma especificidade, e sem olhar para ela, o problema não será combatido e atenuado” (Daniel Piza, “O labirinto da corrupção”, O Estado de S. Paulo, 3/7/05, D3, p. 03)
Verifique-se, no fragmento acima, a presença dos conectores interfrásticos (afinal, portanto); a presença de relações anafóricas entre termos situados em frases diferentes (o presidente, retomando Lula; as elipses – afinal Ø revelam; Ø têm – que remetem escândalos; o problema, referindo-se a corrupção); o emprego dos tempos verbais (presente e futuro).
Se observados a partir de uma perspectiva textual, os elementos citados (anafóricos, conectores, tempos verbais) passam a ser encarados a partir de uma perspectiva diferenciada. Com efeito, os anafóricos deixam de ser considerados meros substitutos (termo que entra no lugar de outro) e passam a ser vistos como termos que possibilitam a retomada do dado, para que a ele sejam acrescidas novas informações. Assim, a retomada de Lula por o presidente indica que ele sabe da existência da corrupção. Os conectivos afinal e, portanto têm um nítido papel argumentativo: o primeiro introduz um fragmento que retoma o que foi dito e, ao mesmo tempo, encaminha o leitor para uma conclusão. Já o ‘portanto’ encaminha o leitor para as conclusões desejadas pelo autor.
Os autores dessa fase valorizaram sobretudo o estudo dos vínculos interfrásticos (elementos coesivos). Nesse sentido, HARWEG (1968) define texto como “uma seqüência pronominal ininterrupta” e menciona como uma de suas (do texto) principais características o fenômeno do múltiplo referenciamento. ISENBERG (1971) conceitua texto como uma “seqüência coerente de enunciados” e enfatiza que o papel dos elementos coesivos no estabelecimento da coerência textual.
O papel atribuído aos elementos coesivos no estabelecimento do sentido global do texto, porém, foi questionado quando se verificou que os citados elementos não são essenciais para a compreensão do sentido global do texto. Vejam-se os exemplos a seguir:
(02)
(2a) Não vi o acidente: não posso apontar o culpado.
(2b) Não vi o acidente: naquela hora, tinha acabado de entrar na / loja.
(2c) Não vi o acidente, contaram-me que ele não respeitou a preferencial.
Mesmo sem a ausência de conectivos; ouvinte/leitor tem a capacidade de construir o significado global da seqüência, porque pode estabelecer as relações lógico-argumentativas entre as partes dos enunciados:
2a: relação conclusiva (portanto).
2b: relação explicativa (pois).
2c: relação adversativa (porém).
Em outros textos, verifica-se que a presença de elementos coesivos não basta para assegurar o sentido global ao texto:
A uva é verde.
A vagem também é verde.
Vovó cozinha a vagem.
A necessidade de considerar o conhecimento intuitivo do falante na construção do sentido global do enunciado e no estabelecimento das relações entre as sentenças, e o fato de vínculos coesivos não assegurarem unidade ao texto conduzem à construção de outra linha de pesquisa. Nessa nova linha, procurou-se considerar o texto não apenas como uma lista de frases, mas um todo, dotado de unidade própria.
Gramáticas de texto
De acordo com MARCUSCHI (1999), as gramáticas textuais, pela primeira vez, propuseram o texto como o objeto central da Lingüística e, assim, procuraram estabelecer um sistema de regras finito e recorrente, partilhado (internalizado) por todos os usuários de uma língua. Esse sistema de regras habilitaria os usuários a identificar se uma dada seqüência de frases constitui (ou não) um texto e se esse texto é bem formado.
Esse conjunto de regras constitui a competência textual de cada usuário e permite aos usuários diferenciar entre um conjunto aleatório de palavras ou frases, ou um texto dotado de sentido pleno. Outras manifestações dessa competência são a capacidade de resumir ou parafrasear um texto, perceber se ele está completo ou incompleto, produzir outros textos a partir dele, atribuir-lhe um título, diferenciar as partes constitutivas do mesmo e estabelecer as relações entre essas partes.
CHAROLLES (1983) admite que o falante possui três competências básicas:
- Competência formativa: permite ao usuário produzir e compreender um número infinito de texto e avaliar, de modo convergente, a boa ou má formação de um texto.
- Competência transformativa: refere-se à capacidade de resumir um texto, parafraseá-lo, reformulá-lo, ou atribuir-lhe um título, assim como de avaliar a adequação do resultado dessas atividades.
- Competência qualificativa: concerne à capacidade de o usuário identificar o tipo ou gênero de um dado tipo, bem como à possibilidade de produzir um texto de um tipo particular.
As gramáticas de texto tiveram o mérito de estabelecer duas noções basilares para a consolidação dos estudos concernentes ao texto/discurso. A primeira é a verificação de que o texto constitui a unidade lingüística mais elevada e se desdobra ou se subdivide em unidades menores, igualmente passíveis de classificação. As unidades menores (inclusive os elementos léxicos e gramaticais) devem sempre ser considerados a partir do respectivo papel na estruturação da unidade textual. A segunda noção básica constitui o complemento e a decorrência da primeira noção enunciada: não existe continuidade entre frase e texto, uma vez que se trata de entidades de ordem diferente e a significação do texto não constitui unicamente o somatório das partes que o compõem.
Apesar dos avanços apontados, cabe reconhecer alguns problemas na formulação das Gramáticas Textuais. O primeiro é a conceituação do texto como uma unidade formal, dotada de uma estrutura interna e gerada a partir de um sistema finito de regras, internalizado por todos os usuários da língua. Esse sistema finito de regras constituiria a gramática textual de uma língua, semelhante, em sua formulação, à gramática gerativa da sentença, de Chomsky. Ora, fica difícil propor um percurso gerativo para o texto, pelo fato de ele não constituir uma unidade estrutural, originária de uma estrutura de base e realizada por meio de transformações sucessivas. Outro problema das gramáticas de texto é a separação entre as noções de texto (unidade estrutural, gerada a partir da competência de um usuário idealizado e descontextualizado) e discurso (unidade de uso). Essa separação é injustificada, pois o texto só pode ser compreendido a partir do uso em uma situação real de interação. Foi a partir das considerações anteriores que os estudiosos iniciaram a elaboração de uma teoria de texto, que discutisse a constituição, o funcionamento, a produção dos textos em uso numa situação real de interação verbal.
Linguística textual
Como lembra MARCUSCHI (1998), no final da década de setenta, o enfoque deixa de ser a competência textual dos falantes e, assim, passa-se a considerar a noção de textualidade, assim estabelecida por BEAUGRANDE e DRESSLER (1981): “modo múltiplo de conexão ativado sempre que ocorrem eventos comunicativos”. Outras noções relevantes da Linguística Textual são o contexto (genericamente, o conjunto de condições externas à língua, e necessários para a produção, recepção e interpretação de texto) e interação (pois o sentido não está no texto, mas surge na interação entre o escritor / falante e o leitor/ouvinte).
Essa nova etapa no desenvolvimento da Linguística de Texto decorre de uma nova concepção de língua (não mais um sistema virtual autônomo, um conjunto de possibilidades, mas um sistema real, uso em determinados contextos comunicativos) e um novo conceito de texto (não mais encarado como um produto pronto e acabado, mas um processo uma unidade em construção). Com isso, fixou-se como objetivo a ser alcançada a análise e explicação da unidade texto em funcionamento e não a depreensão das regras subjacentes a um sistema formal abstrato. A Linguística Textual, nesse estágio de sua evolução, assume nitidamente uma feição interdisciplinar, dinâmica, funcional e processual, que não considera a língua como entidade autônoma ou formal (MARCUSCHI, 1998).
Retirado de : http://www.filologia.org.br/ixcnlf/5/06.htm [EDITADO] By Vinícius Junqui
Posted by Sthefani Curtz